segunda-feira, 18 de maio de 2015

O Linguajar dos Gafanhões


Desde que me envolvi no  mundo do ciberespaço, tenho mantido a preocupação de informar os meus leitores em geral e os gafanhões em particular sobre marcas da nossa identidade como povo que foi capaz de desbravar dunas inférteis, transformando-as em terras produtivas. 
Eu sei, todos sabemos, que a velocidade da história não dá azo a grandes preocupações sobre o nosso passado, tanto mais que o presente nos envolve e o futuro está aí apressado a convidar-nos à corrida para se atingirem metas impostas pelo progresso. 
Aqui ficam, pois, algumas considerações sobre os nossos antepassados, na esperança de que todos aprendam a concatenar os fios da história.



I PARTE

Retrocedendo no tempo

Retrocedendo no tempo, qualquer coisa como meio século, tanto quanto é necessário para chegar à nossa infância, vislumbramos na memória, qual retrato ainda não embaciado pela pátina do tempo, os gafanhões que ajudaram a erguer esta terra, marcada à nascença por uma mistura de povos na sua maioria semianalfabetos ou mesmo analfabetos, sob o ponto de vista académico, sobretudo, mas obstinados no seu querer. De vontade indómita, trabalharam a terra, primeiro, coisa que sabiam fazer como poucos, ou não estivessem eles habituados a lavrar e a cavar areias movediças e esbranquiçadas, que pouco lhes oferecia de volta, e aventuraram-se na ria e no mar, depois, numa ânsia desmedida de irem mais além. E nessa labuta diária, que deixou marcas indeléveis no temperamento e no carácter dos gafanhões , doaram-nos uma cultura de que hoje nos orgulhamos, nós, os que presentemente somos os legítimos herdeiros desses cabouqueiros das Gafanhas que se deixam beijar pela ria e pelo mar, com ternura, e que depois partem à procura de novos mundos.

Cultura que tem sido, desde a primeira hora, no já distante século XVII, e até aos nossos dias, mesclada de outros saberes e dizeres vindos um pouco de todo o país, dando-lhe um sabor que se vai perdendo no tempo. Hoje, com a evolução do ensino e com a influência dos diversos meios de comunicação social, e também graças ao contacto com povos de todo o mundo, que a vida do mar proporciona, os gafanhões já falam mais escorreitamente, de maneira bem diferente, por exemplo, dos tempos da nossa meninice, da década de 40, a que estamos a conduzir a memória já gasta pelos anos, é certo, mas felizmente lúcida para ouvir o linguajar cantado do nosso povo, nas fainas da ria e do mar, e principalmente nas tarefas do campo, por onde brinquei por cima de restolhos com bolas de trapos, às escondidas entre as searas, na estrada aos "calarotes", aos ninhos na mata da Gafanha que pouco depois via nascer a Colónia Agrícola, na borda à pesca da macaca, do caranguejo e de algum perdido robalito.

Linguajar alegre por entre cantigas da época e da tradição popular a desmantar o milho, a fabricar adobos nas dunas junto à mata e depois na construção solidária das casas modestas, na apanha do tremoço, nas novenas que boas almas organizavam para pagar promessas, nas festas e romarias da região, sempre alimentadas pelo espírito de convivência dos gafanhões. De tudo, restam na nossa memória cenas do quotidiano desta gente humilde, mas determinada, que fez as Gafanhas dos nossos dias, o orgulho dos que hoje, vindos de perto e de longe, de quase todo o Portugal, incluindo regiões autónomas e, ainda, dos atuais países de expressão oficial portuguesa, fazem parte integrante dos povos desta península da Gafanha. E todos estes, com a sua maneira de falar e de dizer o essencial do dia-a-dia, de cantar e de rir, de trabalhar e de viver, deram um pouco de si aos povos autóctones, num entrosamento muito feliz.

Mas hoje e aqui, onde nos apetecia continuar a recordar coisas de antanho que vivemos, vamos falar do linguajar destes povos, marcados, e de que maneira, pela vida agreste que as nortadas ainda mais agreste tornavam. Não se trata de uma língua propriamente dita, muito menos de um dialeto, mas única e simplesmente do modo de falar de um povo em que, ainda há meio século, predominava um grande analfabetismo. As meninas não iam obrigatoriamente à escola, e entre os rapazes muitos se esquivavam. E quando não se esquivavam, cedo perdiam o contacto com as letras, porque o trabalho, mesmo em meninos, os absorvia, quer nas tarefas agrícolas e nas marinhas de sal, quer na construção civil, na pesca e na ria. E ainda em indústrias então nascentes, tanto nas Gafanhas, como no concelho de Ílhavo e em Aveiro. A emigração também começou a marcar a nossa gente, e de que maneira, disso ficando rastos de hábitos de vida diferenciados, casas que nada têm a ver com a nossa identidade geográfica e humana, e o espírito de aventura e a determinação que perduram na juventude de hoje!

NB: Parte n.º 1 da palestra proferida no II Colóquio organizado pelo Grupo Etnográfico da Gafanha da Nazaré.

II PARTE


"Quase se podia dizer que mal sabiam falar"



O seu linguajar é, portanto, filho de todas essas circunstâncias e resulta, vezes sem conta, da corruptela de vocábulos e expressões ouvidas das pessoas com quem contactavam, sem acesso a literatura ou a meios de comunicação social, embora na região já houvesse jornais e em algumas casas, muito poucas, um ou outro aparelho de rádio. Estamos a recordar as cerimónias de Fátima, sobretudo no dia 13 de Maio, participadas em casa de um abastado lavrador. Todos sentados no chão da sala, lá íamos ouvindo a transmissão com o dono do aparelho a acertar de vez em quando a sintonia. Era o que havia na nossa já distante meninice, que recordamos com imensa saudade pelo bucolismo que a envolvia.

Também não podemos esquecer os gafanhões que, nos finais do século XIX e princípios do século XX, aprendiam a ler pouco mais que o “b à bá” em casa de mestres populares, alguns dos quais deixaram marcas que o tempo não apagou. À hora da sesta, no Verão, ou ao serão, no Inverno, os mais atrevidos pelas coisas do saber e da cultura lá sacrificavam horas de descanso, no meio ou ao fim de um dia de trabalho duro, para aprenderem as primeiras letras na Cartilha Maternal de João de Deus, ou letras grossas que vinham da arte natural dos senhores mestres, os “sábios” da aldeia que liam e interpretavam, para quem necessitasse ou os quisesse ouvir, os editais afixados às portas das igrejas ou as notificações dos Tribunais, das Finanças ou militares. E era esta leitura periclitante, aprendida em tempos de lazer, embora poucos e nem sempre frequentes, que facilitava, a alguns, a interpretação de livros de devoção popular, os romances célebres, para raros leitores, de certos clássicos, sem esquecer a literatura de cordel, carregada de dramas passionais e de aberrações da natureza, que era vendida de feira em feira ou de romaria em romaria, por cantadores e cantadeiras que sabiam pôr angústia contagiante em tudo o cantavam. E a propósito, como seria interessante fazer um levantamento dessa literatura de cantar e de ler, e que passava de boca em boca, que os nossos avós tanto apreciavam e que deve andar perdida por alguma arca já carcomida pelo caruncho. Também nos alfarrabistas dos grandes centros ela deve ser procurada, ou, ainda, na memória dos nossos velhinhos mais dados a reterem as coisas do passado, como que a quererem ficar perpetuamente agarrados à sua meninice e juventude.

Diz o Padre Resende, na sua célebre e ainda utilíssima Monografia da Gafanha, que “Dos povos da Gafanha diremos que o seu primitivo estado de primários, numa região separada do convívio dos povos mais adiantados, manteve-os por muito tempo numa rudez bastante confrangedora. Quase se podia dizer que mal sabiam falar. Com o tempo e com as vias de comunicação, foram-se polindo, civilizando, começando-se a operar uma grande transformação no seu rude e bárbaro vocabulário, quer na sua forma morfológica, quer na sua parte fonética”. E destaca, como exemplo, algumas palavras e expressões, de que respigamos as que mais lembramos: 

Xintro — Jacinto 
Balisome — Lobisomem 
Manel — Manuel 
Sóte — Sótão
Atóino — António 
Maçazeira — Macieira
Stâmago — Estômago 
P’dibe — Pevide
Azête — Azeite Capador — Alveitar
Pruga — Purga 
Lambisgóia e delambida — Atrevida
Alfanete — Alfinete 
Curesma — Quaresma
Arbela — Alvéola 
Puchi-na — Puxei-a 
Arribar — Subir 
Fostas — Fostes
Vais à festa? — Resposta: ai não! (= vou)
Ó Maria, vais à fonte?— Resposta: Poi xim! (=não vou)
Maria vai arrumar-se = Maria vai casar-se
Bou marcar palhitos = vou comprar fósforos
Anda a comprar = Está grávida
Tem os pés inchados = Está embriagado
Tens a língua grande = falas de mais
É preciso falar com relego e dar um pontinho na língua = Falar só o preciso.” 

De realçar que os gafanhões não pronunciavam, como ainda não pronunciam, o v. Toda a palavra que tenha v se pronuncia com b. Daí, por exemplo, “Bou a Abeiro ou a Ílhabo comprar uma baca e benho logo para casa que a bida espera por mim”.
E muitas outras palavras e expressões poderíamos continuar a citar, acrescentando-lhes mais algumas que a nossa memória retém com alguma fidelidade. Mas hoje ficamos por aqui, que se faz tarde, como diriam os nossos avós.
Antes, porém, de terminar, é justo recriar um ou outro quadro, para exemplificação: 
Estou a ver os homens baixos e magros de camiseta e de ceroulas compridas, de flanela, estas com atilhos amarrados nas canelas, barba por fazer (só se fazia aos sábados, no barbeiro), boné ou chapéu na cabeça, mãos gretadas pelo trabalho duro, descalços, rosto envelhecido, queimado pelo vento e pelo sol impiedosos, força de vontade férrea, poupados, com gosto pelo trabalho e pela solidariedade tantas vezes manifestada, religiosos sem beatices, amigos dos seus amigos. As mulheres baixas e de pernas grossas, sem cintura e sem pescoço, olhos ingénuos, de chapéu de palha na cabeça por cima de um lenço que amarrava sobre o chapéu, roupas escuras, excepto ao domingo, em que se abusava da cor garrida, sobretudo as das secas do bacalhau, pernas com canudos (meias sem pés) enfiados para o sol não as queimar, que era fino tê-las brancas, descalças, mãos gastas pelo trabalhos, tranças na cabeça, porque permanentes eram para as da cidade, religiosas sem exageros, amantes do trabalho e poupadas, solidárias e amigas das suas amigas. 
Mas a maneira de falar, um tanto ou quanto cantada, com alguma malícia pelo meio, entre risadas contagiantes, é que me encantava. 

Levemos a nossa memória até lá atrás e ouçamos a Ti Maria e o Ti Atóino. Vinha ela desaustinada (sem tino) porque a canalha lhe estragara as batatas ali ao pé da escola da Tia Zefa. Estava arrenegada (zangada).
O ti Atóino vinha da borda, onde andara ao moliço para o aido. Antes da maré, porém, deitara-se a descansar, com o corpo moído, na proa da bateira que ia à rola (à deriva). Sem saber como, e com uma nassa, apanhou uns peixitos para a ceia (o jantar de hoje). Já não era mau. Naquele dia não comeriam caldo de feijão com toucinho, com um bocado de boroa. Sempre seria melhor.
— Então queras (queres) ver, Atóino, o que a canalha (os garotos) da escola fez? Andou por riba (cima) das batatas a achar (à procura de) a bola e ‘stragaram-me tudo. Tamém (também) andaram à carreira (a correr velozmente) atrás uns dos oitros (outros) a amandar (mandar, atirar) pedras e a acaçar ( caçar, ao agarra). Se andassem com relego (com moderação), ainda vá que não vá. Mas não. Andavam a toda a brida ( à desfilada, a toda a força), como que a atiçar (meter-se) comigo. E se calhar a professora estava abuzacada (refastelada) na sala. Isto está mal, não achas?
— Pois é verdade, Ti Maria. Não são coisas que se façam. Anda um home (homem) a gastar dinheiro em batatas e buano (guano), muitas vezes sem se astrever ( atrever, poder) e estes mariolas (marotos), num’stante (instante) deixam tudo ‘struído. Era só a gente atirar-lhe com um balde de auga (água), para eles aprenderem. São a mode (como que) tolinhos e alonsas (parvos). Mariolas! (marotos). Vossemecê já falou com a professora? Se ainda não, vá lá e diga-lhe que ó despois (depois) não se arresponsabiliza (responsabiliza). São uns desalservados (cabeças no ar), uns desintoados (desentoados, disparatados).
— Tens razão, Atóino. Vou lá num‘stante (instante), antes que seja tarde. Amanhê (amanhã) tamém (também) falo com os pais. Sempre são homes (homens) e melheres (mulheres) pra (para) darem uns estrincões (apertões com os dedos em zonas sensíveis) aos miúdos, pra (para) eles aprenderem. Opois (depois) que não se queixem. 
E este quadro do Padre Resende, duma riqueza tão ingénua, quanto encantadora, em que dois irmãos falam de uma irmã e do seu namorado. Ouçamo-los, sem tradução, para não perturbar a poesia.
“ — Atão Manele, a nocha M’ria deu-t’oje um quinau, hein?! ... Olha qu’ela quer butar fegura ó pé do Zé B’china, que acolá arranca mulicho como moiro. Cando anda consumida câ bida nem ‘scansa.
— Olha cá, F’cico, a nocha quechopa, nu é p’rá gabar, mas val’ mais có Zé B’china, o namurado. Ó pé dele anda sempre toda concha!
Em dois tempos chegó dia grande. Ouvi-les umas palavrinhas! ... No dia da festa da Chanta, verás que ‘tão casadinhos!...
— Chá me dixeram co sôr Prior deu os banhos na nossa ingreja de Bagos.
— E tamém ela deu ali um banho na auga do rio!
— Nu sê. Ela é uma medalha de rapariga. Olha cá, a cachopa val canto pesa. Nu é só pr’àpanhar mulicho. Nas rasgatas do rio é uma bardasca!
— Canté! Nas rasgatas de num passado (ano passado) foi à pincha e ganhou o primeiro prémio. Inté os fidalgotes lhe catrapiscavam os olhos c’mós namurados. E olha qu’ela não dizia que não!
— Poi xim; mas ela não acardita nesses pardalões que nu vesam chêta e que a criam p’ra...
— Ai! Caredo! ... Mais balia a morte que tal sorte. Ó menos c’o Zé B’china nu há selistro; trabalha muito e é um poipadão. E p’ra cantar ó devino ou na ingreja tem falas como um canairo.
— É certo. E a cantar o “sacerdote” antes do sôr padre ir pr’ó altar! A fala dela parece um orgu.
— Que raça! Aqui pr’à gente: o sôr pai e a sâr mãe ‘stão como três num sapato coa quechopa.
— Nam qu’ela é um inzemplo de lindeza. Ali a Filha do Toino Maluco num tem charavelha nenhuma.
— Essa parece um cadable a andar. Não tem lastro nem tri-ló-lé nenhum.
— E onte, a mazona, apanhou uma ralhada da mãe que a pôs à curta. Até me faz desperar tanta ruindade.
— Prontos. Deixemos o barco inté amanhê, c’a mãe ´stá à ‘spera.”

E por aqui ficamos que decerto também estão à espera que terminemos. Não sem antes, porém, deixarmos aqui o desafio ao Grupo Etnográfico da Gafanha da Nazaré e a quantos se interessam por estas coisas do nosso passado, afinal tão rico, para que o façam reviver através de estudos que nos permitam quadros para mostrar às actuais gerações da nossa terra e não só. Portugal inteiro (e por que não dizê-lo?) e a civilização de que somos parte integrante também têm o direito de conhecer o nosso riquíssimo passado etnográfico. E dizemos riquíssimo porque foi mesclado por culturas populares diversas que lhe emprestaram um sabor distinto que urge divulgar com coragem e tenacidade.

E aqui cabe bem uma palavra muito especial aos inúmeros licenciados em Português da nossa terra, no sentido de se debruçarem com entusiasmo sobre esta ciência da descoberta do passado de um povo, tornando visível às gentes de hoje os alicerces da maneira de ser, estar e falar dos gafanhões, vivam eles em qualquer das Gafanhas, mas perfeitamente identificados por um passado comum. 

No meio da vida, quantas vezes sem sentido, de tantas pessoas, adultas e jovens, todos aqui temos um manancial de temas escondidos em arcas e sótãos, mas também na memória de muitos dos nossos avós, para escoldrinharmos e trazermos à luz do dia, que o mesmo é dizer, à cultura dos tempos de hoje, que são os nossos tempos. E porque o futuro se constrói com exemplos e achegas do passado e do presente, resta-nos esperar que, deste colóquio, saiam entusiasmos por esta riqueza que é pertença dos presentes, se não for esquecida, mas que queremos constituam o orgulho dos que vierem depois de nós. É por isso que aqui estamos.

Fernando Martins


NB: Parte n.º 2 da palestra proferida no II Colóquio organizado pelo Grupo Etnográfico da Gafanha da Nazaré.

1 comentário:

Senos da Fonseca disse...

Muito positivo. É bom trazer este património imaterial á memória.
SF

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