quarta-feira, 24 de junho de 2015

Os gafanhões vistos por outros

Um gafanhão, cujo nome desconheço

Não podemos ignorar que os primeiros povoadores destas dunas eram pessoas simples, pouco ou nada afeitas a letras e leituras, muito menos a qualquer tipo de cultura académica. O seu saber era de experiência feito, à custa de muita labuta de sol a sol. Viviam do que cultivavam, porque não havia dinheiro para compras fora da terra que iam conquistando, palmo a palmo, adubando as areias estéreis com o suor que lhes caía do rosto queimado pelo sol salgado da maresia.
Frederico de Moura, que foi médico em Vagos, escritor, político e homem da cultura, conhecedor profundo da alma e da determinação da nossa gente, em frases realistas, quais pedras preciosas buriladas, diz assim:

«O gafanhão — ou o avô do gafanhão — quando se foi às lombas para as cultivar sabia que ia investir contra vidro moído totalmente carenciado de matéria orgânica que desse qualquer quentura ao berço de uma planta. Ele bem via a mica a faiscar-lhe no lombo e bem sentia o vento a transmutar-lhe, de momento a momento, o versátil.
«Não se foi a ela com a esperança do filho que se achega ao colo maternal e ao seio opíparo que destila o leite da humana ternura. Nada disso! Ao invés, investiu com ela como enteado que não espera da madrasta a carícia rica de promessas, nem a generosidade que dá o pão milagroso…
«Quem surriba chão de areia não encontra onde enterrar raízes de esperança e quem irriga duna virgem sabe que mija numa peneira! Quem lança a semente num ventre que é maninho não pode ter esperanças de fecundação. E, por isso, o gafanhão, antes de cultivar a lomba, teve de corrigir-lhe a esterilidade servindo-se da Ria que lhe passa à ilharga, procurando nela a nata com que amamentou a semente que deixou cair, amorosamente, naquele chão danado. E humanizou a duna.

(…)


«… Homens da terra a pentear o leito da laguna para fertilizar as dunas — vidro moído ainda há poucos anos estéril, ainda há poucos anos maninha — terra que parecia gafada, a terra da Gafanha! Foi o moliço ou foi o suor humano que fecundou as areias picotadas de mica espelhante? Foi o lodo, a Ria ou a fadiga dos homens que realizou o milagre que, agora, reverdece sobre o nosso olhar, nos batatais viçosos (“negros de verde”, dizem os gafanhões) e nos feijoais delicados como placas de Jardim?» 10

10.AsD, n.º5

Rocha Madail afirma que os homens «são robustos e de boas formas, e as mulheres de mediana estatura, mas cheias e vigorosas. São de carácter expansivo e índole benévola. É raridade o casamento de um gafanhão, homem ou mulher, fora da colónia, que talvez por isso conserva imutável a sua feição primitiva». GNECSM
Características que podem explicar a força que tiveram de despender para ganhar a batalha da construção do povoado.

Joaquim Matias, em texto publicado no Arquivo do Distrito de Aveiro, salienta:

«um homem persistente em seu querer, teimoso no trabalho, inquebrantável na fé de vencer. E há-de haver um dia, por justiça imanente da vida, cinzel ou caneta de homem de génio que materialize em forma artística a epopeia sublime desse camponês que ninguém conhece, quando ele é maior ainda do que o guerreiro da reconquista e o marinheiro das descobertas».

E mais adiante:

«O Gafanhão pretendeu apenas bastar-se, arrancar alimentos da areia, ser útil. Não tem consciência da epopeia magnífica erguida em três gerações, com suor e enxadadas, à sombra da proa recurvada dos seus moliceiros. Mas nem por isso é menor o seu mérito. Nem por isso a sua Gafanha, a Gafanha que ele fez sozinho, contra tudo e contra todos — nem por isso a sua Gafanha deixa de ser um triunfo monumental que aí temos a atestar ao País e ao Mundo que o braço do Homem continua sendo a grande alavanca da Criação, e que em boa verdade vence quem teima, porque “a fé revolve montanhas”.»10

10. ADA, n.º36, de 1943

As mulheres da Gafanha merecem um estudo profundo sobre o seu papel na construção das povoações e das comunidades desta região banhada pela Ria de Aveiro. É certo que alguns estudiosos e escritores de renome já se debruçaram sobre elas, cantando loas à sua coragem, mas também ao seu esforço, desde sempre indispensáveis na luta de transformação de areias improdutivas em solo ubérrimo.

Há décadas, e é sobre essas mulheres que nos debruçamos, elas eram as mães solícitas e amorosas dos filhos, mas também os “pais” que garantiam o sustento da casa, enquanto os maridos se aventuravam nas ondas do mar ou tentavam a emigração, na busca de mais algum dinheiro que escasseava em terra. 

Em jeito de desafio a quantos podem e devem, pelos seus estudos e graus académicos, retratar as nossas avós, com rigor histórico, estético, poético e antropológico, já que, aqui, não há lugar nem tempo para isso, apenas indicamos algumas pistas, que há mais de 60 anos nos foram oferecidas por Maria Lamas 11, na célebre obra “As mulheres do meu país”12.

Na década de quarenta do século passado, Maria Lamas, que faleceu em 1983, com a bonita idade de 90 anos, andou pelas Gafanhas, mais concretamente pela Gafanha da Nazaré, olhando, conversando, retratando e estudando as nossas avós. «O esforço da mulher na labuta comum e a sua influência no desenvolvimento da Gafanha são apontados, em toda a região de Aveiro, como um exemplo admirável», afirma a escritora, depois de se referir, a traços rápidos, à localização da região que estudava, e de citar as areias e os ventos, as marés e a vegetação, as batatas e os cereais, as salineiras e as pescadeiras, as trabalhadoras das secas do bacalhau. E foram, sobretudo estas, as mulheres das secas, as que mais a entusiasmaram, ou não fossem elas o exemplo claro da camponesa e da operária na mesma pessoa.

«A seca do bacalhau na Gafanha [Empresa de Pesca de Aveiro] emprega muitas centenas de mulheres, durante parte do ano, havendo secas onde o trabalho é permanente, porque abrange duas campanhas, a dos lugres e a dos arrastões.

«Na referência a esta actividade feminina focaremos em especial a Gafanha, visto ser ali que ela atinge o maior desenvolvimento, como é também ali que existem as mais importantes secas do bacalhau de todo o País.» Assim escreve Maria Lamas, que acrescenta: «Pelos costumes e ambiente em que vivem e ainda porque tanto se entregam à lavoura como à faina da seca ou qualquer outra que se lhes proporcione, elas conservam, sob certos aspectos, a mentalidade da mulher do campo; mas a disciplina das tarefas realizadas em comum ou distribuídas numa coordenação de actividades, o sentido das responsabilidade, os horários fixos e ainda o contacto com outras realidades directamente ligadas ao seu próprio esforço vão-lhes dando uma noção diferente da vida e criando consciência da importância do seu labor.»

A escritora recorda a maneira de viver das mulheres da Gafanha, com a sua «ignorância», o conceito de «fatalismo, a que subordinam o seu destino», mas também o instinto de «defesa dos seus interesses», tornando-as «solidárias». E sublinha: 

«No vestuário revelam maior cuidado na limpeza do que as camponesas, que saltam da enxerga, estremunhadas, antes do luzir do dia, e lá vão, para a labuta sem fim, indiferentes à água, ao sabão, ao pente... 

Não se imagine, porém, que as mulheres do povo, naquelas circunstâncias, têm uma vida mais leve e fácil, em relação às suas irmãs que permanecem em contacto permanente com a terra. Com muito poucas excepções, elas fazem longos percursos, de manhã e à tarde, porque moram longe do local onde trabalham. Também, de uma forma geral, todas aproveitam algumas horas que lhes fiquem livres para ajudar na modesta faina agrícola da família, seja regar o milho, ir ao mato e à lenha ou tratar dos animais. 

A sua vantagem não está no aligeiramento das tarefas, mas sim na mudança do ambiente, na variedade dos assuntos que lhes prendem a atenção e no convívio com as companheiras.» 

E diz mais:

«As mulheres das secas do bacalhau são desembaraçadas, faladoras e alegres, como se a vida lhes não pesasse.
Em conjunto, nas horas de plena actividade, cantando em coro ou simplesmente escutando os programas de rádio, que um amplificador de som leva a todos os recantos das instalações onde trabalham [EPA – Empresa de Pesca de Aveiro], elas constituem um quadro pleno de vitalidade e optimismo.». 

Refere, depois, o que é o trabalho árduo destas mulheres, desde descarregar, lavar, salgar e levar o bacalhau, todos os dias, para as “mesas” da seca, para depois, mais tarde, empilhar, seleccionar e enfardar. 

Acrescenta que elas andavam muitas vezes descalças, «apesar do perigo constante de se ferirem, com as espinhas e barbatanas que se encontram espalhadas pelo chão». E acrescenta que uma ou outra consegue arranjar botas de borracha, «presente do irmão ou noivo que foi aos bancos da Terra Nova», sublinhando que estas «são consideradas, pelas colegas, como privilegiadas». 

11, Maria Lamas, jornalista, política, escritora, defensora dos direitos da Mulher,

12, 1.ª e  2.ª edição




Estória

Quando passei na Gafanha

«Quando passei na Gafanha [1922], vi as cachopas da beira-rio, todas molhadas, sempre metidas na água a rapar o moliço. Feias e ingénuas. A uma calculei-lhe: – Tem para aí treze ou catorze anos. – Tenho vinte e um, e três filhos, respondeu. – Outra tinha ficado a olhar para mim com olhos inocentes de bicho e as mãos postas sobre os seios redondinhos – sobre aquilo, como diz a Ti Ana, que o Senhor lhe deu e ela precisa…

A ti Ana Arneira, com cuja amizade me honro, é um dos meus melhores conhecimentos da Gafanha. Mulher capazona, como por lá se diz. Acompanha-me pelo areal, e conta-me logo à primeira a sua vida. Tipo atarracado e forte, de grossos quadris, vestida de escuro, chapéu na cabeça e aguilhada em punho. O homem foi para o Brasil há muitos anos (— É o rei dos homes!... —), ficou ela e os filhos por criar. Criou-os todos. Netos, doenças, lutos. Nunca desanimou. A força que a sustenta é admirável, profunda e radicada, como a de quase todas as mulheres do povo que conheço. Deitou-se à vida — lavrou campos. Vieram mais aflições e outras mortes.

— Então de que lhe morreram os filhos?
— Sei lá, a morte não se quer culpada. Era preciso sustentar a família. Pegou nos bois e no carrinho e começou a transportar sal da Gafanha para Mira. Fez mais: antigamente no Arião também havia companhas, e quando faltava um pescador a ti Ana agarrava-se ao remo como um homem e ia ao mar no barco. — Nem do diabo tenho medo. Só tenho medo aos cães loucos. 
— A extensa planície que atravessa, duas, três vezes por dia, é um deserto. A Ti Ana vai e vem de noite, sozinha, com os bois que lhe fazem companhia. Agora tem um campo, barcos para o moliço, novos netos para criar — e olha cara a cara o destino sem esmorecer. A sua vida é uma grande lição de energia.»

Raul Brandão, 
in “Os Pescadores”

Nos finais do século XIX e até aos nossos dias, as migrações impuseram as suas leis. Hoje, os gafanhões, com raízes e matizes diferentes, constituem uma expressiva mescla que pouco ou nada tem a ver com os primeiros gafanhões. O seu aspecto físico sofreu inúmeras transformações. E os gafanhões actuais herdaram a herança mais sólida, a caracterizada pelo apego ao trabalho, pela coragem na luta contra as adversidades, pelo espírito de poupança e pelo amor à terra. 

Um inquérito levado a cabo por Vasco Lagarto13 em 1984-1985 dizia que os eleitores registados nos cadernos eleitorais eram oriundos de mil povoações diferentes do nosso país. E é justo sublinhar a perfeita integração que se tem verificado de todos quantos a estas terras chegam para governar a vida, sinal da forma acolhedora como são recebidos.

13. Director da Rádio Terra Nova e presidente da Cooperativa Cultural da Gafanha da Nazaré

Século XX, tempo de futuros risonhos

A luta tenaz dos gafanhões, vencido que estava o domínio das dunas e a conquista da ria, vai prosseguir, agora à volta de outros desafios. A indústria instala-se, o comércio amplia-se e diversifica-se, há escolas para as primeiras letras que combatem, ligeiramente ainda, o analfabetismo, descobre-se o liceu e o casario multiplica-se, semeado a esmo. O Seminário nunca deixou de ser uma porta aberta para a formação dos jovens que aspiravam ao sacerdócio. Muitos não chegaram a essa meta, mas ficaram com marcas para a vida, especialmente as de pendor humanista.

O sonho da independência em relação à paróquia e freguesia de S. Salvador, Ílhavo, instala-se. Os projectos de maioridade começam a dar sinais. É preciso criar a freguesia e a paróquia.

A Gafanha é já uma região aprazível onde há propriedades rentáveis, a praia da Barra oferece o mar e o sol a quem tem tempo para descanso aos fins-de-semana. 

Ainda é uma terra de certo modo isolada? É, sim senhor. E não foi por acaso que um dia uma reunião clandestina de republicanos de Aveiro aqui teve lugar, por volta de 1900 ou 1901, no armazém de pesca “Maria do Nascimento”. Eduardo Cerqueira afirma, em “Notas sobre a implantação da República em Aveiro e seus antecedentes”, que a Gafanha da Nazaré, «então quase erma», tinha as «condições excelentes para que os conspiradores não pudessem ser descobertos». 14

14. “Aveiro e o Seu Distrito”

Em 20 de Julho de 1909, já padre, pois fora ordenado em 1896, D. João Evangelista testemunha de forma poética as nossas paisagens:

A Ria de Aveiro

Deixem-me ir hoje, no meu rico vagar, pela estrada que de Aveiro vai ter à Barra.
A começar nas Pirâmides.
Mas antes de lançar pés à suavíssima marcha, esperemos que avance e que passe uma vela que se mostrou ao longe, vinda certamente com pescaria miúda das costas de São Jacinto em demanda do nosso canal.
Já se distinguem perfeitamente os clássicos e variados remendos do pano: um xadrez, meus amigos, um verdadeiro xadrez!
À escota vem um marnoto de idade, de ceroilas curtas, nem chegam aos joelhos: de camisola azul ferrete, grossa como uma tábua, grossa como um cortiço, aberta à boca do peito; de carapuço de lã na cabeça, com a ponta derrubada para a nuca e terminada por uma bolinha.
— Linda manobra, sim senhora, linda manobra.
— Pois c’anté! — responde o velho, descobrindo a venerável cabeça.

A estrada não é muito larga nem dá muitas voltas para chegar ao seu aprazível e benfazejo destino: mas de ambos os lados tem uma renda finíssima de tamargueiras que mergulham os troncos na água e que se vêem surgir na maré-baixa, de entre os calhaus arroxados e humedecidos da margem.
Nestas alturas, não há remédio senão poisar a pena durante um momento e coçar a cabeça!
Olha-se para um lado: água, muita água, brisas, espumas, velas, barcos, moinhos, areia e sol!
Olha-se para o outro lado: tabuleiros de cristal, montinhos brancos expostos ao tempo, marinhas, marnotos e salineiras, a planície, a imensidade, e no fundo, no extremo horizonte, a sombra quase imperceptível, a divina moldura dos pinheirais!
Olha-se para trás: a cidade: Alto! Ali não se distingue, ali não se aponta para nada: é a cidade, é Aveiro!
Nestas doces ocupações do espírito vai-se chegando, sem dar por ela, à ponte da Gafanha. Dizem que é uma ponte velha, feia, indigna dos nossos tempos; mas eu, se fosse milionário, comprava a peso de oiro a consolação de sentir neste momento debaixo dos pés as pranchas carcomidas do seu tabuleiro.
Agora começam casinhas baixas à beira da rua e, na areia amoliçada, semeadura às mãos cheias: milho, feijão, batata, abóboras, pinheiros!
Eram dez horas da manhã de 20 de Julho de 1909. Que estava eu a fazer em casa, taciturno, pasmado?! Fugi para aqui, vim passar a minha agonia para estas areias onde a Providência não me negaria com certeza o seu anjo de consolação! A Barra! O Forte! A Ronca! A Capela!
Eu já disse Missa naquela ermida. A meio da Missa ateou-se um ramo seco que deitou uma chama enorme; e um doido manso que estava presente, o Julinho de Esgueira, exclamou aterrado no meio da assembleia:
— Ai Portugal, que te vais à vela!

D. João Evangelista de Lima Vidal,
em “Aveiro: Suas Gentes, Terras e Costumes”, pág.12

NOTA:

1. Texto publicado em "Gafanha da Nazaré: 100 anos de vida", de minha autoria;
2. Não atualizei a ortografia;
3. Há outras referências aos gafanhões que tenciono publicar em breve.


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